HELICOPTEROFOBIA





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Eu sou de um tempo em que as historias eram passadas bocalmente (de boca em boca) contada à beira de fogueira, no terreiro, aproveitando o clarão da lua cheia, por minha avó, só bem mais tarde eu entendi que a expressão correta era oralmente. Bem essas narrativas, eram ricas de absurdos, povoadas de criaturas fantásticas, mulas sem cabeças, lobisomens, casas, arvores, encruzilhadas mal assombradas, caçadores de potes de ouro e diamantes, enfim fatos que encanta, espanta e prende à atenção de qualquer criança. Trinta e dois anos após sua partida, a minha avó continua viva na minha memória. Posso dizer que ela foi uma das pessoas mais importantes na minha vida, já que eu nasci como seu primeiro neto e ela foi à parteira, ou seja, aquela pessoa que primeiro estapeou minhas nádegas, era também minha madrinha e juntando tudo isso ao titulo de avó, na sua concepção, ela era até mais importante que a minha mãe, varias vezes ouvi dela essa exortação: Edi, (era assim que ela me chamava) ocê me respeite (como se eu não a respeitasse) eu sou sua avó, sua madrinha e sua mãe de aparação! Ahh! Dona Isabel Ferreira de Jesus, a senhora deve saber quanta falta me faz. Mas Dona Isabel, minha avó, não era importante só pra mim; não senhor! Ela foi um ícone na sua época, neta de índio com branco veio ao mundo em 1910, e sendo resultado de constante miscigenação, era uma mulher de altura média de 1.55cm, pele branca, de negros e lisos cabelos que caiam em cascatas ate alcançar as nádegas.

Curandeira, era eximia preparadeira de mezinhas e forte nas rezas, sim benzia e curava quebranto, espinhela, arquela e titela caída (que segundo ela é um osso que fica entre o abdome e o tórax), imunizava contra mal olhado (o famoso olho gordo), conhecia um rol enorme de simpatias milagrosas, entre elas, uma que é de fácil execução, que é para fazer menino falar, e outra para tirar o medo dos primeiros passos. A primeira consistia em pegar um determinado numero de um fruto do cerrado, chamado xiquexique, e estourar na boca da criança enquanto proferia umas palavras, e é ai que esta o segredo do milagre, e a outra era assim: quando a criança começava a ficar de pé e hesitava dar os primeiros passos, pegava-se um machado e desferia um golpe, mais ou menos um metro a frente da criança, que era onde se encontrava o medo, não posso afirmar se esse método era eficiente, mas trago na memória a imagem de um menino caindo de costa após a execução do ritual não sei se pelo susto ou se pelo deslocamento de ar. Minha avó era uma dessas pessoas respeitadas por todos que a conheciam, seus conhecimentos conceitos e atitudes por mais absurdos que pudessem ser, e às vezes realmente o era, tinham o valor de verdades absolutas.

 Aqui na velha Papuda, enquanto viveu, ela teve o seu lugar de respeito. Aqui, eu, enquanto criança era o Edvair, filho do Fulô e neto da Dona Isabel, era meio que intocável e me considerava um menino corajoso ou pelo menos pensava que o era, ate o dia do helicóptero, que na época eu conhecia nas fotografias da revista cruzeiro, fatos e fotos e manchete como horoscop. Eu cito meu pai só para frisar que havia dois seres terrenos em quem eu tinha absoluta confiança, eram meu pai e minha avó. No meu pai, pela coragem, sabedoria e força física; Na minha avó, pela influência e pelo respeito que incutia. No final dos anos 60, pela fé depositada em pessoas como minha avó, só se ia ao hospital em ultimo caso, pois como foi citado acima, os males corriqueiros curavam-se com as mezinhas, rezas e simpatias das rezadeiras e curandeiras locais, por isso, o esforço de Osvaldo cruz, vital Brasil, e de Albert Sabin não tinham aqui o seu valor devidamente reconhecido.
Mas, devido um surto de meningite e incidências de poliomielite e de outras variantes epidemiológicas, o governo promoveu uma forte campanha de vacinação. Divulgou nas escolas, através dos agentes da sucam (até hoje eu não sei por que nós os chamávamos de os malárias), e no dia determinado, todas as pessoas tocadas pela informação e pelo medo de morrer convergiram para o colégio da bênção, local escolhido como posto de vacinação, onde eu estudava no período matutino. Esse evento foi um acontecimento memorável, mesmo naqueles remotos tempos, o numero de pessoas que se deslocaram de seus locais de residência e se concentraram nos arredores da escola da bênção foi considerável. Gente do café sem troco, da cachoeirinha, do Volks Clube, (hoje cond. jardim botam. V) vieram a pé, a cavalo, de carroça, na carroceria de velhos caminhões, os mais abastados em automóveis Aero Willis, rurais etc. Eu me arrisco a dizer que o palco desses acontecimentos tiveram alguma semelhança com o recenseamento ordenado pelo rei Herodes no ano XII da era crista, pelo quadro de imagem primitivista, que relanceia pelo meu cérebro.

Desde menino, eu sempre tive fascinação pelas folhas editadas e isso teve grande influência na minha vida. No ano de 1968, as revistas: cruzeiro, fatos e fotos, e manchete que entre outros assuntos, davam ênfase a cobertura da guerra do Vietnam e mostrava a crueza dos combates que mesmo em preto e branco chocava, e eu tive acesso a essas revistas através de uma menina moça, chamada Nelci, cuja irmã as traziam da casa dos patrões. Havia também, um informativo chamado repórter alvorada, que se me não engano ia ao ar em três horário distintos. Esse informativo radiofônico quando ia noticiar os fatos da guerra, começava com som de uma rajada de metralhadora, acompanhada da voz do locutor, era mais ou menos assim:- Ra-ta-ta-ta-ta-ta-ta Ra-ta-ta-ta-ta: o repórter Alvorada informa; -240 mortos na guerra do Vietnam- numa grande ofensiva as tropas do quarto exercito americano conquistou mais uma importante vitoria nas colinas do Vietnã.....e por ai ia e eu, ouvindo isso quase todo santo dia olhando as imagens de helicóptero de gente massacrada nas revistas e de ouvir a onomatopéia do matraquear de metralhadora, mesmo sendo um roceiro, que ainda não tinha visto um helicóptero e nem uma metralhadora, já os associava a causadores de morte.

Pois bem, estávamos nós concentrados no colégio da benção uns aguardando e outros adiando o momento de receber a ferroada da pistola de vacinação contra a meningite; Transcorria o burburinho daquela aglomeração, mista de harmoniosa e desorganizada, onde rapazes e moças aproveitavam para acertar encontros, flertar, amantes trocavam olhares furtivos, crianças brincavam de pic pega enquanto a fila de vacinação ia andando pachorrentamente. Quando de repente o tempo parou, as pessoas se entreolharam, olharam pros lados e depois olharam pro céu e viram; viram aquele monstro que na época era estranho, o tal do helicóptero, o bicho desenhou uns círculos em torno do colégio e depois começou a descer (pousar), amigos foi uma debandada quase que geral, uma correria desesperada e os que não correram (como eu) não o fizeram por não ter para onde ir, ou por não ter forças nas pernas, no meu subconsciente veio o matraquear das metralhadoras do repórter alvorada, as imagens dos corpos estendidos nas mais variadas e grotescas posições e extático, como aquele garoto do filme cidade de deus, vi o mundo girar 360o entorno do meu eixo, com as pernas trêmulas e quase vomitando o coração, eu acho que pensei; Valei-me meu São Sebastião o Vietam é aqui. Foi ai que uma lufada de vento, provocado pela hélice do helicóptero me trouxe um aroma reconfortante, era o cheiro característico do corpo do meu pai, eu sai um pouco do estado de torpor olhei para o lado e o percebi fleumático como um inglês, com um cigarro entre os dedos enquanto observava as evoluções do helicóptero, que nesse instante se preparava para concluir a aterrissagem. Calma essa que foi me contagiando, porque nessa época, meu pai era o meu único herói, se ele estava do meu lado e tranquilo eu não deveria ter o que temer (?).

O helicóptero pousou, a porta abriu e de dentro dele sai um homem enorme, três ou quatro sujeitos corajosos, entre eles meu pai, foram ao encontro do tal homem, conversaram com ele por uns poucos minutos e voltaram com a informação que ele viu a aglomeração e pensou ser um acidente e decidiu pousar para averiguar; Conversa! Pra mim, ele estava fazendo um voo corriqueiro e quando do alto percebeu o desespero daquele bando de capiaus, correndo desesperados em varias direções, resolveu circular o local para aumentar o terror e pousar só para se divertir as nossas custas. Naquele dia, eu fui apresentado pela primeira vez ao imponderável e de quebra, descobri que era um grande medroso, para não dizer covarde. Quanto a aquele piloto se ainda estiver vivo e bom da memória, ainda deve dar boas gargalhadas à custa daquele bando de caipiras que se assustaram com a imagem do voo do seu helicóptero.

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