Corria o ano de 1995, que para mim começara meio abalado, pois descortinei o mencionado ano representando o papel real de um falido, não que antes eu fosse um mega empresário, longe disso, era proprietário uma microempresa de matérias para construção, mas que proporcionava a mim a minha família e três funcionários diretos e outros tantos indiretos salário e renda para dar subsistência para as suas famílias.
Os anos de 1993/94 (executando a morte de Ayrton Senna) me haviam sido solícitos com a consolidação de minha empresa o nascimento minha filha caçula e o Brasil tetra campeão mesmo apresentado a futebol truncado e retranqueiro do técnico Parreira. Vale frisar que até o ano 93 eu era o único dono da minha empresa, até que o locador me pediu o imóvel, para montar um negocio próprio no mesmo.
Foi quando um “amigo” oportunamente me propôs sociedade alegando possuir um ponto ideal para a continuação do empreendimento e eu depois de confabular com minha esposa embarquei na malfadada sociedade o resultado foi que em no inicio de 1995 passei a minha parte para o irmão do meu sócio para livrar o meu CPF, e cai no rol dos desempregados, sai de um pró-labore confortável para a busca de um salário.
Pois bem fui trabalhar numa loja em São Sebastião, desempenhando as funções de vendedor, caixa, motorista e encarregado, É ai que entra a parte importante da minha narrativa. Eu saí da condição de empregado para patrão retornando a origem (de empregado) sem, no entanto perder a humanidade, pois enquanto empresário não deixei o sucesso momentâneo me subir à cabeça e depois ao falir não me entreguei ao desespero, afinal eu apenas havia voltado às origens. Ao compor o quadro da empresa, o patrão proprietário, conhecendo meu perfil, resolveu explorá-lo em toda a sua extensão.
Uma vez apresentado ao quadro de funcionários da empresa (hoje uma renomada loja de matérias de construção) me enturmei com os colegas e dei seguimento a minha rotina particular de viver um dia de cada vez, fazendo de cada instante um aprendizado e mantendo o firme propósito de despertar no dia seguinte, um ser sempre um pouco mais evoluído. Encontrei na maioria dos colegas amizade verdadeira, procurei retribuir os gestos positivos e com relação à empresa, arregacei as mangas e fui à luta.
Era e ainda é política dessa empresa, onde qualquer pessoa independente da sua raça, crença ou deficiência física poderia e pode trabalhar desde que esta pessoa tivesse idoneidade moral e se adaptasse de forma satisfatória no desempenho da função exercida e ai que entra um rapaz surdo mudo, chamado José. Numa manha, estando eu, no balcão de atendimento pude observar um senhor acompanhado de um jovem se aproximar do patrão e a ele apresentar o rapaz que o acompanhava como sendo seu filho e solicitar um emprego para o mesmo, não sem antes informar que o rapaz, era mudo e surdo.
O patrão depois de fazer sua avaliação particular do rapaz o admitiu para o cargo de ajudante de serviços gerais, o apresentou aos demais funcionários através de gestos. Mesmo sem haver na firma alguém conhecedor de libras, o rapaz se apresentou e logo se entregou aos afazeres com dedicação, prazer, desempenhado com solicitude e bom humor as tarefas a ele impingidas.
Eu entrei no ano letivo de 95 comprando material escolar para o meu filho no cheque pré e desempregado, estava naquela fase de luta para reerguer, mas devo admitir que apesar de nunca ter baixado a cabeça e me entregado a depressão me custava um preço alto manter o sorriso e o sonho para reencetar novas metas. Entre elas, estavam o projeto de vender parte de um terreno a muito adquirido para comprar um caminhão, nesse meio tempo eu tinha minhas recaídas íntimas, mas isso começou a mudar com o desenrolar da relação de coleguismo trabalhista com o mudinho.
Ao perceber a capacidade de concentração no trabalho, a facilidade de aprendizado, o bom humor com que ele levava a vida e a atenção que dispensava aos colegas, especialmente a mim. Pois houve uma empatia instantânea e espontânea entre nós, já que eu tomei logo a iniciativa de entender sua linguagem de sinais, que não era a libra oficial, mas uma desenvolvida por ele mesmo, como eu penso ser natural no universo dos surdos mudos. Disso resultou que em pouco tempo, era eu a pessoa de quem ele mais procurava se aproximar na loja, e o patrão, ao se aperceber disso me chamou de lado, com um leve ar de pilhéria disse: “Escuta cara, acho que numa outra encarnação você já foi mudo, dada a facilidade com você se entende com o mudinho (era assim que nós o identificávamos), por isso eu gostaria que quando coincidir de você estar fazendo entrega num dos veículos, o levasse como ajudante, por que os outros motoristas não tem a mesma paciência com ele, pode ser?”
Tinha que ser por dois motivos, primeiro: o pedido era uma ordem velada, afinal o homem era o patrão; segundo trabalhar com o mudinho era fácil e prazeroso, pois ele era detalhista em tudo o que fazia nada que estivesse do seu ângulo de visão escapava da sua percepção, exemplo: estávamos reunidos para o lanche da tarde, que era a facultado pela firma e onde patrão compartilhava diariamente junto com um dos três turnos de 15 minutos (tempo estipulado para o lanche).
Pois bem, num desses turnos estava eu, o mudinho e mais alguns colegas, quando o patrão chegou para lanchar. Feito o lanche saímos da copa por ultimo, eu, o mudinho e o patrão, este depois de dar uns cinco passos no pátio da loja estacou com um ar meditativo, foi quando o mudinho se aproximou dele o tocou no ombro espalmou a mão esquerda e com a direita fez a pantomima de rabiscar na palma da mão e apontou para a copa onde o patrão tinha deixado e esquecido o seu bloco de anotações que só o mudinho havia percebido.
Dias depois, ocorreu de eu ter sido designado para fazer uma entrega, no condomínio Quintas do Interlagos, tendo o mudinho como ajudante. Carga feita e conferida saímos da loja que é localizada na rua da gameleira, cortamos o bairro centro, fronteamos a avenida comercial do setor tradicional e acessamos a pista de que liga o Colégio São Paulo à Vila do Boa que sucessivamente leva ao condomínio acima mencionado.
Naqueles tempos a via asfaltada terminava em frente colégio São Paulo, entre este e o condomínio existia uma media de 04 km de estrada de terra (hoje é apenas 01 km). Ao acessar a estrada de terra eu desenvolvi uma velocidade de 60 km/h com uma enorme nuvem de poeira -era mês de junho- me seguindo, foi quando eu percebi a minha frente, à cerca de uns 200 metros, uma mulher caminhado, com uma criança nos braços e outra andando a seu lado, agarrada na barra da sua saia.
Imediatamente eu reduzi a velocidade do veiculo para diminuir o volume da poeira, de modo que, quando passei pela mulher com suas crias a poeira tinha praticamente se extinguido, depois de ter colocado um boa distancia entre nós, voltei a imprimir no caminhão maior velocidade e enquanto fazia essa operação pude sentir o olhar do mudinho fixo em mim. Assim que eu deixei a mulher com as crianças para trás ele tocou meu ombro, olhei rapidamente para ele e pude ver um brilho especial em seus olhos com a mais pura expressão de aprovação enquanto encenava os seguintes gestos: fazia o sinal de positivo, apontava para o céu em seguida pros olhos; o que pra mim significou: “Muito bem, Deus esta vendo e aprova a sua atitude”, para mim esse foi o melhor, mais importante e significativo dos elogios recebidos em minha vida, ele fez-me sentir um sujeito de atitudes próximas do aceitável, e veio para mim, através da voz de um surdo mudo.
Edvair Ribeiro em 24/02/2011
0 comentários:
Postar um comentário