Tô descalço tava calçado tô descalço ou saudosas reminiscências de tempos de penúrias.





Corria o ano 1969, a região da “velha papuda” (hoje São Sebastião), era um lugarejo de aspecto rural onde predominavam as olarias. Trabalho árduo onde só os fortes permaneciam. Por que era uma lida que começava às duas horas da madrugada e se estendia até o cair da noite, e sendo um remanescente dessas olarias eu faço questão de frisar isso. Na época, o traçado geográfico da região não só da papuda, como o de todo o distrito federal era completamente diferente, pois a própria Brasília estava com apenas nove anos de idade. Se bem lembro, para acessar o Lago Sul e posteriormente a Papuda, o caminho era a pista que ligava o Plano Piloto ao aeroporto. Ao acessar a decida do morro azul, que era o portão principal de entrada do lugar, tinha-se a vista panorâmica de um vale exuberantemente verde com duas únicas artérias que ligavam os pontos leste e oeste do lugar.
Era no sopé desse morro, onde eu, um menino de oito anos morava com meus pais e meus cinco irmãos e onde sobrevivíamos retesando uma frágil linha que nos separava da miséria absoluta, éramos mau vestidos, descalços e subalimentados, esse foi um dos períodos mais difíceis da história de minha família. É que nesse tempo houve um embargo de algumas olarias por parte da fiscalização (é naquele tempo isso já acontecia) o que acarretou um intenso arrojo financeiro do qual nós fomos vitimas, mas, mesmo assim, brincávamos, riamos e eu particularmente sonhava, mesmo sendo um sonho pardacento sem forma nem acabamento, eu sonhava e também ia à escola que se localizava a mais ou menos a 2 km do casebre em que morávamos. Era na Escola Classe Cerâmica da Bênção, onde eu era, com toda certeza, o mais feinho da turma, um neguinho do tipo roupa rôta e pé descalço alem de abrigar no ventre pelo menos uns dois tipos diferentes de vermes, popularmente conhecido como lombriga. Sendo o mais diferentizinho do grupo eu sofria pequenas perseguições com apelidos bobos que revidava sempre na base da porrada, porque valentia não me faltava. Era também tratado com certa condescendência pela professora dona Francisca, por quem eu era apaixonado o que pode ser ridículo, mas não um pecado mortal -quem nunca se apaixonou por uma professora que atire a primeira pedra?- apesar da diferença de idade (coisa sem importância para mim) e do abismo social que nos separava. Lembro ainda que estávamos naquele período frio entre junho e julho, frio esse que já havia entranhado e entorpecido meus ossos e pés, pois no semi-miserê em que vivíamos, não tínhamos cobertores suficientes para nos agasalhar e calçado foi um luxo que só pude usufruir a partir da minha adolescência.
Vou aqui abrir um espaço para falar da dona Francisca; Dona Francisca era uma mulher alta (pelo menos para mim um raquítico e menino de oito anos) sempre elegantemente vestida, pele branca rosada, cabelos castanhos, os olhos? Eu acho que também eram castanhos se bem que para mim os olhos não tinham nenhuma importância, pois o que completava o conjunto eram aquelas coxas que ela exibia ousadamente, coxas bem torneadas e apetitosas (me perdoem a vulgaridade) que quando sentava cruzava e descruzava alimentando inconscientemente meus sonhos de menino de roça, mas não tão inocente como costuma frisar alguns hipócritas contemporâneos meus com frases do tipo- esse mundo está perdido, na minha época as crianças não eram assim. Pura balela, malicia e perversão existe desde que o mundo é mundo e eu pelo menos com relação a malicia não fugia a regra. Ahh! Dona Francisca, dona Francisca dando aula, apagando o quadro, sorrindo, cruzando as pernas e... Bem chega de devaneios.
Como eu citei no inicio da narrativa, o uso do sapato foi uma pratica tardia na minha vida, por isso desde os primeiros dias de aula eu ia para a escola descalço o que para mim era a coisa mais natural do mundo. Uns meses depois, não posso precisar quando, um amigo chamado Antonio, me ofereceu um conga, a titulo de empréstimo, que eu depois de falar com meu pai aceitei e passei a ir para o colégio devidamente calçado, o que foi nos primeiros dias um sacrifício por que os meus pés acostumados a ausência dos sapatos eram espalhados nas extremas laterais, nas falanges erroneamente chamadas de artelhos, na famosa forma do pé de pato, e por isso sofreu muito ao se sentir comprimido no exíguo espaço do conga. Conga esse, que era o sonho de consumo dos meninos pobres da época, mas que era uma tortura para as pessoas de pés chatos, mas, eu resisti bravamente talvez por ter sentido algum olhar de admiração de alguma menina ou mesmo da professora. Aconteceu que algum tempo depois quando os meus pés estavam quase se adaptando as formas geométricas do interior do famigerado conga, o meu amigo Antonio o requisitou de volta e eu devolvi prontamente, afinal o dito conga a ele pertencia – e eu voltei a ir descalço para o colégio e logo no primeiro dia de meu retorno a condição de pé no chão eu pude sentir um olhar de reprovação(isso eu lembro muito bem), da minha linda professora e ela não deixou por menos. Diante do quadro negro, que na época era realmente negro, a professora, metida num vestido saco, que terminava um pouco antes do joelho, que quando ela estendia o braço para a parte superior do quadro permitia a gente ter um vislumbre mais extenso do roliço das suas coxas, abordou o tema das doenças parasitarias. E falou da esquistossomose, da solitária frisando que eram provocadas por vermes que segundo ela era pequenos seres que não se podia ver a olho nu (só através de um aparelho chamado microscópio), e atacava pessoas que viviam em condições carentes de saneamento básico, bebiam água sem filtrar, não lavavam as mãos antes de comer e andavam descalças... E ao pronunciar a palavra descalça, ela fez uma pausa me fitou e disse- por falar nisso cadê o seu sapato edvair? E me fitando com aquele olhar severo, aguardou e recebeu minha resposta que fluiu de forma naturalmente verdadeira.
-Professora; o conga não era meu era emprestado e eu devolvi pro Antonio. Amigos passe o tempo que passar, eu não esquecerei a expressão chocada da professora, tempos depois eu entendi o impacto da minha resposta na sua cabeça, ela tentou me usar para ilustrar o tema de sua aula de biologia sem ter conhecimento da situação de penúria em que eu vivia e foi tamanho o seu choque que sua aula acabou ali. Ainda hoje eu penso que o que mais a chocou foi a naturalidade com que eu expus minha a realidade, e ate então ela não tinha a noção exata da situação em que ela estava inserida e que só naquele instante lhe foi apresentada na figura daquele “capiuazinho”, que ainda hoje lembra da circunferência de suas coxas, que era isso ó, a meio palmo acima da junção do joelho e que deve te-la mandado direto daquela aula para o divã do analista. Quanto a mim passei pelo período de incubação pelo processo metamorfósico saindo da condição de esquisitinho e me transformando nesse modesto, mas lindo de exemplar de descendente de quilombolas, enfim sobrevivi e estou aqui para contar a historia.

2 comentários:

Unknown disse...

Show cara, gostei muito da história! Moro aqui em São Sebas também e nunca tinha visto esses relatos de como essa cidade nasceu! Parabéns!

Unknown disse...

LINDO TEXTO EDVAIR OU SIMPLESMENTE, EXEMPLAR LINDO DE QUILOMBOLA!

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